Renascendo das cinzas, por Eric Hobsbawm

O artigo abaixo foi escrito por E. J. Hobsbawm, provavelmente o maior historiador do século XX, e autor da coletânea das Eras do século XIX (das Revoluções, do Capital, dos Impérios), além de uma obra sobre a história do século passado e várias outras, como “Uma História do Nacionalismo e do Banditismo”. Encontra-se no livro organizado por Rubin Blackburn e lançado no Brasil sob o título “Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo” (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992). 



"Exigirão não apenas uma sociedade melhor que a do passado, mas, como sempre sustentaram os socialistas, um tipo diferente de sociedade. Uma sociedade que não é apenas capaz de salvar a humanidade de um sistema produtivo que perdeu o controle, mas em que as pessoas possam viver vidas dignas de seres humanos: não apenas no conforto, mas juntas e com dignidade."


Renascendo das cinzas: o socialismo no século XXI:


Qual é o futuro do socialismo? Como historiador, meu primeiro instinto, pode-se dizer a minha deformação profissional, é perguntar: qual o seu passado e como esse passado afeta a sua situação presente e suas possibilidades futuras? E esta é uma abordagem plausível, pois o termo, o conceito, o programa, as realizações do socialismo e das políticas socialistas não constituem simples dados objetivos como, por exemplo, a localização de Londres no tio Tâmisa, geograficamente oposta aos Países Baixos, mas sim construções mentais. São nomes, modelos, rótulos que usamos para procurar compreender a situação na qual se encontra a humanidade desde a era das revoluções no final do século XIX e no começo do XX e que damos a certas tentativas de transformar e/ou melhorar a sociedade.

Inicialmente o termo socialismo” não era um termo político e não conotava nenhuma forma específica da organização da sociedade; diferente do termo mais antigo “comunismo”, que desde o começo designava basicamente uma sociedade baseada na propriedade coletiva e não-privada, administrada como tal – e, desde Babeuf, o movimento político para transformá-la em realidade. “socialismo” e “socialista” eram simplesmente derivados da palavra “social” e significavam pouco além de que o ser humano é por natureza um ser social e sociável. Começou a adquirir algo parecido com o sentido que conhecemos apenas nos anos 30 do século passado* [XIV], quando começou a fazer parte do vocabulário social e político, espalhando-se a partir da Grã-Bretanha e da França. É claro que já existia anteriormente sob outros nomes, mas não por muito tempo: chamava-se ‘cooperação’ e ‘cooperativa’ na Grã-Bretanha ou “coletivo” ou “coletismo” na França – mais tarde virou ''coletivismo'' e conhecido por nomes como mutualismo. Temos que fazer duas observações a respeito.


Em primeiro lugar, o oposto do “socialismo'' ainda não era o “capitalismo” mas sim o ‘individualismo’. O que tornou o socialismo anticapitalista foi simplesmente que parecia lógico, no começo do século XX, afirmar que a essência de uma sociedade individualista era a competição, isto é, o mercado, e consequentemente a base e uma sociedade social(ista) tinha que ser a cooperação e a solidariedade. Isto abria caminho para um variado leque de possibilidades. Qualquer coisa que variava de uma mera modificação do laissez-faire nos interesses da previdência social a colônias inteiramente sem propriedade privada ou dinheiro contava como socialismo. Na Grã-Bretanha, este sentido original do socialismo permaneceu central até o final do século XIX e o surgimento das greves trabalhistas socialistas. Por este motivo os fabianos pensavam que podiam converter o Partido Liberal em socialista sem que ninguém percebesse.


Em segundo lugar, o socialismo originalmente não tinha quaisquer conotações políticas (aqui novamente diferia do comunismo). Podia ser instituído pelo Estado ou por qualquer outro tipo de autoridade eficaz, mas podia, principalmente, ser estabelecido por comunidades voluntárias; por aquilo que Bernard Shaw chamou de “socialismo por iniciativa privada”. Isto, aliás, provavelmente explica porque havia mais socialismo – isto é, mais colônias socialistas – nos Estados Unidos da década de 1840 que em qualquer outra parte do mundo. Na verdade, até 1880, quando as pessoas pensavam em socialismo pensavam em socialismo dos trabalhadores pensavam no socialismo através de cooperativas voluntárias e outras formas de ação voluntária mútua e coletiva. Foi apenas quando os movimentos trabalhistas, seguindo tanto a tradição jacobina de democracia como os marxistas, adotaram a ação política coletiva que o socialismo se associou à conquista do poder do Estado. Naturalmente o Estado passou a ser o elemento central na construção do socialismo.

 Mas lembrem-se de uma coisa. O objetivo deste exercício era principalmente uma forma particular de organizar a produção, a distribuição e o comércio. Citando um antissocialista inteligente dos anos de 1880, John Rae, era ‘no fundo uma exigência de justiça social’. Eis porque, diferente dos construtores de utopias das colônias voluntárias, os novos partidos socialistas e seus pensadores e escritores prestaram surpreendente pouca atenção ao que fariam uma vez que estivessem no poder – antes de realmente chegarem lá no final da Primeira Guerra Mundial. Os marxistas de fato recusavam-se a pensar sobre o futuro. “O partido socialista”, afirmou Kautsky, “pode fazer propostas positivas apenas para a ordem social existente. Além disso, as sugestões não podem lidar com os fatos, mas originam de suposições; são, portanto, fantasias e sonhos” [1]. O teor real do socialismo até 1917-18 era o capitalismo virado de ponta-cabeça: o que era ruim agora seria bom no futuro. Os detalhes não interessavam. Mesmo os que se importavam com os detalhes, como os fabianos britânicos, não pensavam seriamente que uma economia socializada pudesse funcionar. Era apenas óbvio que tinha de funcionar melhor que o capitalismo.

Durante a maior parte da primeira metade do século XX, o próprio capitalismo parecia dar razão aos socialistas. Entre 1914 e 1950 (aproximadamente), tudo quanto podia dar errado com o capitalismo deu errado. Atravessou duas guerras mundiais e dois surtos de revolução nacional e social que eliminou, ou pelo menos condenou à morte, os grandes impérios coloniais e acabou com um terço da humanidade do sistema capitalista. Os regimes políticos típicos da sociedade burguesa, as democracias liberais, foram depostos em todo o mundo. Em 1940-1 mal sobreviviam fora dos Estados Unidos, uma orla da Europa e das Américas e na Austral-ásia. Acima de tudo, a economia capitalista estava adoecida e quase desabou da pior baixa jamais sofrida, a única que realmente pareceu capaz de levá-la ao colapso total. Qualquer tipo de socialismo tinha que ser melhor que isso. Nada nos é mais óbvio hoje que insuficiência econômica de uma economia de comando primitiva sob planejamento central estatal como a que se proclamava o socialismo na União Soviética. Mas há sessenta anos** políticos e intelectuais formavam filas para ir a Moscou descobrir os segredos do “planejamento” que aparentemente tornava os soviéticos imunes ao declínio que devastava seus próprios países.

Os socialistas, é claro, haviam sido forçados a considerar o que significava concretamente o socialismo, ao invés de considerá-lo apenas um slogan: em 1917, os bolcheviques assumiram o poder e de 1918 em diante os importantes partidos sociais-democratas tornaram-se o governo ou juntaram-se a ele e portanto exigiam políticas reais. Mas, não havendo dado atenção sintomática àquilo que queriam, muito menos a como deveria ser uma sociedade socialista, tiveram que pensar suas políticas a curto prazo ou trabalhá-las sob a pressão dos problemas mais imediatos. Em suma, reagiram a situações específicas. E a maioria dos problemas atuais do socialismo hoje surgiu do fato de que as políticas socialistas elaboradas para enfrentar a situação de crise e colapso capitalista – aproximadamente de 1914 a 1950 – não mais se adequam às situações do final do século XX. Ou melhor, nunca determinamos o que é anacrônico e obsoleto nelas e o que não é.

Referi-me ao socialismo no singular. Mas após 1917 devemos referir-nos a pelo menos duas vertentes de socialismo, uma que no momento está em colapso ou que já ruiu, isto é, a democracia social e os sistemas socialista soviético ou de inspiração soviética. O sistema soviéticos são os únicos que realmente alegavam ter implantado economias e sociedades verdadeiramente socialistas. Pelo que conheço, jamais algum governo ou partido social-democrata, não importa quão radical ou duradouro, fez tal alegação e vale lembrar que nem mesmo a União Soviética alegava ter alcançado o socialismo até 1936. Talvez devesse ter esperado um pouco mais...

O socialismo do tipo soviético era essencialmente dominado por condições nas quais os soviéticos se encontraram depois da Revolução de Outubro: um país pobre e incrivelmente atrasado, cuja única tradição política havia sido a autocracia, faltando-lhe todas as condições conhecidas para o socialismo, totalmente isolado e sob constante ameaça. O desenvolvimento econômico e tecnológico rápido, ou seja, a industrialização vertiginosa, era a principal prioridade. O bolchevismo tornou-se uma ideologia do desenvolvimento econômico rápido para países nos quais não existiam as condições para o desenvolvimento capitalista – e por algum tempo teve tanto êxito que se tornou um modelo econômico para muitos países no Terceiro Mundo, como a Índia, mesmo para aqueles que não simpatizavam com a sua política. Operava essencialmente como uma economia de guerra, na qual certas prioridades são aceitas como dadas – como a necessidade de vencer a guerra – e na qual não se calcula o preço; ou melhor, onde todos os outros objetivos são subordinados a um objetivo principal. Embora a economia de comando centralizada tenha sido, em seu melhor momento, um instrumento pronto, bastante bruto e enormemente desperdiçador, obteve algumas realizações impressionantes. Enquanto agonizava o capitalismo, essas realizações pareciam ainda mais impressionantes do que eram na verdade. O que a economia soviética não conseguiu fazer, como ficou claro, era acompanhar o ritmo do capitalismo, uma vez que este se recuperou nos anos 50. No que se refere à vida das pessoas comuns, podia fornecer as necessidades básicas – alimentação, habitação, roupas e lazer em nível muito baixo – mas não muito além disso. Por outro lado, era muito melhor que o capitalismo no que diz respeito à educação de massa e (até a economia começar a sofrer impasses da Guerra Fria nos anos 70 ou 80) era muito melhor que outros países do Terceiro Mundo no que dizia respeito à saúde e à previdência social.

A comparação com uma economia de guerra não é casual. Pois o único modelo real de políticas públicas que tinham os socialistas, que nunca antes haviam pensado o que fariam se estivessem no poder, era uma economia de guerra, começando por aquelas da Primeira Guerra Mundial. Isto não se aplica apenas aos bolcheviques, mas também aos sociais-democratas do Ocidente, pelo menos nos países beligerantes. Pois uma economia de guerra exigia planejamento e administração ou operacionalização pública de grandes partes da economia, e não menos a mobilização do trabalhismo, preferivelmente com o auxílio de organizações trabalhistas e de algum elemento de previdência pública sistemática. Um resultado desta influência do modelo de guerra – e a ideia de planejamento de Lênin teve especificamente a economia de guerra alemã como inspiração – foi a intensificação da propensão socialista em favor da ação estatal centralizada. Quando tanto bolcheviques como sociais-democratas pensavam no socialismo, pensavam quase que exclusivamente no conflito entre prioridades do planejamento estatal e de mercado.

Se a ideia comunista do socialismo foi determinada pela necessidade de países atrasados chegarem ao crescimento econômico o mais rapidamente possível, qualquer que fosse o custo, as políticas sociais-democratas foram dominadas por outra situação histórica especial, isto é, a recessão do entre-guerras, a crise do capitalismo; mais precisamente, pelo desemprego em massa. Foram influenciados, é claro, por outras preocupações. Além da experiência das economias de guerra, não contestavam a política da democracia eleitoral, porque era ela que permitia e eles transformassem em movimentos de massa; ademais, foram às vezes os principais arquitetos das democracias que eles conquistaram depois de longas agitações e greves gerais na Suécia, Bélgica e na Áustria. Curiosamente, enquanto a social-democracia entusiasticamente aceitou o que veio a ser conhecido como “estado de bem-estar social” depois de 1945, não foram eles que o criaram e o estado de bem-estar social não desempenhou nenhum papel relevante em seu pensamento. Na Grã-Bretanha foi elaborado principalmente pelos liberais, na França pelos sociais-católicos e na Alemanha por burocratas socialmente conscientes. A contribuição socialista (ou mesmo comunista ocidental) para seu desenvolvimento veio principalmente por meio do governo local, que autoridades esquerdistas frequentemente controlavam mesmo sob governos nacionais anti-esquerdistas. Daí a importância da habitação popular que se originou com os conselhos socialistas: como em Viena e Londres. E também devemos dizer que a experiência não-socialista ofereceu-lhe modelos de organização econômica socialista (como também foi o caso dos bolcheviques).

A própria palavra trusts era usada na Rússia soviética para os órgãos que coordenavam todas as fábricas que produziam mercadorias semelhantes. Isto revela a fonte de toda a inspiração: o empreendimento capitalista-monopolista. E não há dúvida de que na Grã-Bretanha o modelo para as nacionalizações do Partido Trabalhista após 1945 não era o ministério governamental, que o capitalismo vitoriano havia usado simplesmente para quaisquer partes da economia que precisavam ser dirigidas publicamente – em particular os serviços postais –, mas uma corporação pública e de certa forma autônoma. O desemprego em massa, entretanto, foi a chave para a política social-democrata do pós-guerra, como também a política do capitalismo keynesiano e do New Deal que se integrou a ela: seu imperativo político principal era o ‘pleno emprego’.

Esta política de fato teve êxito brilhante, senão do ponto de vista socialista, então do ponto de vista de restaurar a dinâmica de um capitalismo de bem-estar social reformado e baseado no consumo de massa – tão bem sucedido que o pleno emprego encontrou suas próprias dificuldades nos anos 70 e 80 do século XX, por razões que não nos ocuparão aqui. Quando isto aconteceu, desmoronou o consenso do capitalismo reformista e a democracia social. O neoliberalismo de livre-mercado e a crítica ao estado de bem-estar social ganharam terreno, embora triunfassem apenas em um ou dois países infelizes – principalmente nos Estados Unidos de Reagan e na Grã-Bretanha de Thatcher. Bem, não foi exatamente um triunfo. Provou ser politicamente impossível, mesmo sob extremistas, liquidar ou mesmo reduzir de forma significativa as despesas com a previdência social. De outro lado, os sociais-democratas encontraram-se sobrecarregados por um conjunto de políticas que sem dúvida não funcionavam tão bem como havia funcionado nos anos dourados de 1950 a 1973. E não tinham nenhum apoio além de Keynes e a nacionalização. A experiência de Miterrand no começo dos anos 1980 foi amarga, mas decisiva.

Assim, tanto comunistas como sociais-democratas descobriram nos anos 70 e 80 que não podiam simplesmente seguir as políticas que eles haviam mais ou menos improvisado ou adaptado após a Primeira Guerra Mundial, por não terem jamais pensado seriamente sobre elas. A história lhes havia dado um impressionante período de sucesso, ou pelo menos de um relativo ou aparente sucesso por algum tempo. Este sucesso havia se extinguido. Pela primeira vez, os socialistas tiveram que pensar sobre o socialismo.

O que nos tem ensinado a segunda metade do século XX, este período mais revolucionário da história da humanidade? Em 1950 pessoas que viviam da agricultura constituíam a maioria da população mesmo em alguns dos países mais industrializados da atualidade: Japão, Itália e Espanha. Hoje constituem uma minoria, às vezes uma minoria muito pequena, em quase toda a Europa, no mundo islâmico ocidental e no hemisfério ocidental. Uma era de mudanças tão dramáticas e sem precedentes deve inevitavelmente levar socialistas a rever as suas premissas e expectativas. E tornou-se claro que um número delas não pode ser mantido.

Primeiro, tornou-se claro que o capitalismo produziu uma abundância de bens e serviços além das expectativas de nossos pais e que a maioria das pessoas comuns no Ocidente goza de um padrão de vida muito além do que se poderia conceber há cinquenta anos. E graças ao estado de bem-estar social, os pobres possuem um abrigo mais amplo contra os ventos do infortúnio. O argumento de que o socialismo é necessário para eliminar a fome e a pobreza já não convence mais. Até mesmo o argumento de que apenas o socialismo poderia acabar com o desemprego em massa, que parecia tão persuasivo quando eu era mais jovem, já não é mais persuasivo. O Ocidente tem vivenciado uma geração de pleno emprego sob o capitalismo e apesar de nos encontrarmos novamente em uma era de desemprego em massa na Europa, não é, de fato, sentido como tão intolerável quanto nos anos 30 e também não há muitos que acreditem que possa ser eliminado por um sistema econômico totalmente diferente. Em suma, o argumento material a favor do socialismo enfraqueceu.

Segundo, muito do que foi visto como típico de uma economia socialista tem, desde os anos 30, sido cooptado e assimilado por sistemas não-socialistas, principalmente por uma economia planejada e a propriedade estatal ou pública de indústrias e serviços. Isto pode ser surpreende, uma vez que o tema dos últimos dez anos, aproximadamente, tem sido o triunfo do livre mercado, o desmantelamento do Estado e a vitória ideológica do neoliberalismo, mas o fato de os ideólogos e colegas de Thatcher [e Reagan] terem estado convictos de que era necessário retornar ao passado demonstra, na verdade, o quanto o tema havia sido promovido na maioria dos Estados capitalistas após a guerra. E, em termos estruturais, não tem sido possível voltar tanto ao passado. O Bando Mundial calculou que de 1980 a 1987, no mundo inteiro, ocorreram poucas mais de 400 privatizações e que metade delas se realizou nem cinco países: Brasil, a Grã-Bretanha de Thatcher, Chile, Itália e Espanha. Se somarmos todas as privatizações nas três maiores economias, os Estados Unidos, o Japão e a Alemanha, somam o total de 14 casos. Em suma, as economias capitalistas que emergiram da Segunda Guerra Mundial e que experimentaram o maior surto de crescimento econômico da história não eram economias de mercado puro, mas economias mistas com substancial setor público e considerável planejamento público. Isto não as transformou em economias socialistas, mas tornou mais difícil dizer exatamente o que eram economias socialistas e como diferiam estruturalmente das economias não-socialistas.

Suponha, por exemplo, que olhássemos para dois países vizinhos, um que alegava ser socialista e o outro não, a saber, a Hungria e a Áustria nos anos 70 (ou seja, antes da crise na Europa Oriental). Ambos, incidentalmente, eram muito bem-sucedidos segundo o padrão de seus sistemas. Na Áustria capitalista, por razões históricas, todos os grandes bancos foram nacionalizados, junto com virtualmente toda a indústria pesada e a produção de energia, bem como uma grande parte dos setores de engenharia, eletricidade, eletrônica e armamentos; ou seja, o que se chamava de “segmentos de ponta” da economia. Na Hungria socialista, como sabemos, a economia havia sido substancialmente liberalizada com considerável espaço para o (mínimo) empreendimento não-estatal. Em que lugar, nestes dois casos, devemos traçar a linha entre sistemas capitalistas e socialistas? Ou seja, o critério estrutural do socialismo enfraqueceu.

Exceto – e este é meu terceiro ponto – no tipo soviético de economias dirigidas 100% pelo Estado e com planejamento central. Mas desde os anos 60 tornou-se cada vez mais claro, não menos para seus próprios governos, que este tipo de economia socialista funcionava mal e crescentemente com problemas: e isto porque lhe faltava qualquer critério de racionalidade econômica, isto é, de custos comparativos; sem se fazer referência a com os consumidores poderiam indicar o que desejavam. Em suma, faltava-lhe o elemento de mercado. Todas as tentativas de reforma desse sistema pretendiam introduzir esse elemento. Assim, enquanto as economias capitalistas do pós-guerra introduziram elementos que outrora, antes da guerra, eram vistos como caracteristicamente socialistas, as economias socialistas procuraram introduzir elementos considerados caracteristicamente capitalistas. O Ocidente teve mais êxito que o Leste, mas as distinções simplistas do tipo 8 ou 80 entre os sistemas estavam tornando-se menos nítidas.

Uma coisa, entretanto, não mudou: tornou-se de fato mais óbvia que anteriormente. Este é meu quarto ponto. Uma coisa é ver o mercado como um guia para a eficiência e eficácia econômica. Ver o mercado como o único mecanismo de distribuição de recursos em uma economia, como veem os fanáticos do reaganismo e do thatcherismo ou o Institute of Economic Affairs e outros centros de pensamento ultracapitalistas, é inteiramente outra. O mercado produz desigualdade tão naturalmente como combustíveis fósseis produzem poluição do ar. E, como há muito tempo ressaltou Adam Smith, existem certas coisas – essencialmente bens públicos – que o mercado não produz de forma alguma, uma vez que não trazem lucro a ninguém, ou não tanto quanto se poderia lucrar com outras coisas. Nenhum sistema de transporte moderno, nacional ou de um grande centro urbano, pode ser adequadamente financiado por uma empresa que visa ao lucro, mesmo que esta não chegue a perder dinheiro. 



Nas “economias de mercado social” (segundo a expressão alemã) ou nas economias keynesianas ou influenciadas pela social-democracia ocidental, essas tendências são até certo ponto controladas pela política e pela administração pública. Mas podemos ver o que ocorre quando, nos Estados Unidos de Reagan ou na Grã-Bretanha de Thatcher, é deixada inteiramente nas mãos do mercado a construção de moradias. Somente se constroem casas para os que podem pagar por elas e hoje somam 70000 os sem-tetos em Nova Iorque. Além do mais, sob tais circunstâncias, os ricos tornam-se muito mais ricos e a brecha entre eles e os pobres torna-se constantemente maior. Isto também tem ocorrido visivelmente tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos. Nos países ricos e desenvolvidos as pessoas se consolam com o pensamento de que os que são largados no ralo da sociedade são, afinal, uma minoria de no máximo um terço da população. E eles até mesmo possuem televisão e realmente não morrem de fome. Dois terços estão se ajeitando bem. A terrível palavra “subclasse” (underclass) surgiu nos anos 80 para caracterizar as vítimas do mercado. Vivem sob os pavimentos da sociedade respeitável e para vê-los precisamos procurá-los por baixo desses pavimentos – até que apareçam abertamente como em Nova Iorque, onde não é possível não enxergar um exército de sem-tetos revirando as latas de lixo ou não cheirar o odor característico da maior e mais esplêndida cidade do globo, o odor da urina velha daqueles que não têm onde morar senão na rua.




Poder-se-ia afirmar que tudo isso é um argumento não pelo socialismo, mas a favor de uma economia mista humanizada, variando do mercado social (que é o capitalismo com um pouco de influência social cristã) a Estados sociais-democratas como os escandinavos e a Áustria, que constituem um capitalismo com um pouco mais de influência socialista. Não direi que não. Concordo com John Kenneth Galbraith que “em um sentido muito real, tanto no Ocidente quanto no Leste, a nossa tarefa é a mesma: buscar um sistema que combine o melhor da ação orientada pelo mercado e a ação socialmente motivada”. E também concordo com ele que não é necessariamente uma questão de princípio básico se uma indústria ou serviço particular seja fornecido por uma empresa pública ou privada. Atualmente, por exemplo, há séria exigência por parte de grandes corporações por algo parecido com o British National Health Service, simplesmente porque o sistema de seguro de saúde particular se tornou incrivelmente burocratizado e absurdamente caro. Mas em alguns outros países europeus, como na França por exemplo, o seguro-saúde patrocinado pelo governo parece funcionar bastante bem. A questão crucial não é a de detalhes técnicos, mas se um país aceita a obrigação de proporcionar atendimento médico e de saúde adequado para todos os seus cidadãos e de garantir-lhes o acesso a ele.

Mas não esqueçamos nunca que, enquanto que resultados ruins de mercados podem ser e de fato têm sido até certo ponto  controlados - com mais e mais êxito em países como a Áustria e a Escandinávia, onde partidos trabalhistas e sociais-democratas têm integrado o governo – há, no entanto, pelo menos três grandes consequências do desenvolvimento capitalista que escaparam ao controle. Estas nos ajudam a definir a plataforma socialista para o século XXI.

 A primeira é a ecologia. A humanidade atingiu agora o ponto em que pode de fato destruir a biosfera – a habitação de plantas, animais e humanos no globo -- ou pelo menos mudá-la para pior de formas imprevisíveis e dramáticas. O “efeito estufa” é algo com que todos nós temos que aprender a conviver. Isto é o resultado de crescimento econômico desmedido em passo acelerado. É verdade, a teoria socialista sempre foi a favor disto e a prática socialista, especialmente no Leste Europeu, produziu poluição maciça. Mas o capitalismo, diferentemente do socialismo, compromete-se pela sua natureza ao crescimento sem limites. E o crescimento de agora em diante precisa ser controlado de alguma forma. O ‘desenvolvimento sustentável’ não pode operar através do mercado, mas contra ele. Não pode funcionar por meio da livre escolha do consumidor, mas através do planejamento e, onde for necessário, contra a livre escolha. Neste momento a Comunidade Europeia decidiu proibir a pesca no Mar do Norte durante uma semana a cada mês para não acabarem os peixes.

A segunda é a forma terrível com que vêm aumentando a brecha entre os habitantes dos países ricos e desenvolvidos e aqueles de países pobres, com exceção de um ou dois “países de industrialização recente” e um punhado de Estados bilionários da OPEP. O “mundo desenvolvido”, que representava um terço da humanidade em 1900, representa hoje entre 15 e 20 por cento – aproximadamente o mesmo que em 1750. E enquanto que o mundo desenvolvido em 1900 tinha um PIB aproximadamente três vezes maior per capita que o resto da humanidade, em 1950 era cinco vezes mais, em 1970 sete vezes mais e segundo a Unctad em meados dos anos 80, 12 e 1/2 vezes mais. Quanto aos dez por cento dos países mais ricos do mundo, seu PIB per capita é de 58 vezes aquele dos dez por cento mais pobres. Não há nenhum “efeito cascata” quando o mundo se torna mais rico. Pelo contrário, sem ação sistemática essa situação explosiva tornar-se-á ainda mais explosiva.

A terceira é que, ao subordinar a humanidade à economia, o capitalismo mina e corrói as relações entre seres humanos que formam as sociedades e cria um vácuo moral em que nada contra a não ser o desejo do indivíduo, aqui e agora. No topo, homens sacrificam cidades inteiras à lucratividade, como no filme Roger and Me, que demonstra o que aconteceu com a cidade de Flint quando a General Motors fechou suas fábricas. Na base, meninos e adolescentes se matam uns aos outros por seus casacos de pelo de carneiro ou moletons da moda, como ocorre todo dia em Nova Iorque. Porque, percebe-se, os seres humanos não se encaixam no capitalismo. O capitalismo exige um crescimento de produtividade sem fim. Diferentemente das máquinas e de seus produtos, que se tornam cada vez mais eficientes e baratos, os seres humanos permanecem obstinadamente humanos. No melhor dos casos seriam demitidos e substituídos por robôs, como na indústria automobilística. Onde não podem ser substituídos por máquinas, como em hospitais ou nos serviços sociais de maneira geral, eles também têm que ser dispensados porque, diferentemente das máquinas, os seus salários sobem como o de outras pessoas e todos nós sabemos, dos economistas empresariais, que os salários não devem subir mais do que a produtividade. Seria mais simples se não precisássemos deles. Bem, a economia pode sobreviver sem eles a um grau extraordinário, mas eles não desaparecem. Continuam ali. Mas o que acontece com eles?

Deixe-me dar um exemplo do que acontece com eles: a indústria automobilística americana outrora proporcionava empregos. Trabalhar nas linhas de montagem das fábricas de Henry Ford em Wilson Run ou River Rouge não era muito divertido, mas era bem pago e oferecia uma infinidade de empregos para negros e brancos pobres do sul dos Estados Unidos. Não eram trabalhadores qualificados, não tinham educação, frequentemente talvez não muito inteligentes, mas estavam dispostos a trabalhar e trabalhar na linha de montagem dava-lhes a chance de criar uma família decentemente, com um pouco de auto-respeito e um pouco de dignidade, como cidadãos e como membros da United Auto-workers Union. Hoje a indústria automobilística não precisa mais deles. O único órgão que oferece ao pobre negro americano um trabalho que traga auto-respeito deste tipo é o exército, o que explica por que um terço das tropas no Golfo era de negros. E o que aconteceu com as comunidades abandonadas porque se decidiu que seu trabalho não era mais necessário? Tornaram-se os guetos anárquicos e amargurados, impregnados pelo medo, pelas drogas e pelas armas, onde homens e mulheres vivem da previdência social ou do crime.

Os socialistas estão aqui para lembrar que em primeiro lugar devem vir as pessoas e não a produção. As pessoas não podem ser sacrificadas. Nem tipos especiais de pessoas – os espertos, os fortes, os ambiciosos, os belos, aquelas que podem um dia vir a fazer grandes coisas, ou mesmo os aquelas que sentem que seus interesses não estão sendo levados em conta nesta sociedade – nem qualquer outra. Especialmente aquelas que são apenas pessoas comuns, não muito interessantes, “apenas para fazer número”, como dizia a mãe de um dos meus amigos. Como diz uma personagem em uma das linhas mais emocionantes de Death of a Salesman, de Arthur Miller, que trata justamente de uma tal pessoa indefinida e relativamente inútil: ‘Deve-se prestar atenção. Deve-se prestar atenção a esse tipo de homem’. É delas que trata o socialismo; são elas que o socialismo defende.


O futuro do socialismo assenta-se no fato de que continua tão necessário quanto antes, embora os argumentos a seu favor já não sejam os mesmos em muitos aspectos. A sua defesa assenta-se no fato de que o capitalismo ainda cria contradições e problemas que não consegue resolver e que gera tanto a desigualdade (que pode ser atenuada através de reformas moderadas) como a desumanidade (que não pode ser atenuada).



Se o colapso merecido e miserável de sistemas socialistas do tipo soviético não tivesse ocupado as manchetes em 1989 e 1990, haveria menos propaganda sobre quão maravilhosamente funciona o capitalismo hoje. Não é verdade. Está de volta o mundo de fome e guerra. E mesmo onde não está criando a ruína visível, como em partes da América Latina e da África, não é tudo o que dizem ser. Como disse Galbraith enquanto o Leste europeu ainda era nominalmente socialista: “É um fato desagradável mas totalmente inegável que ninguém que procure uma vida melhor mudar-se-ia de Berlim Oriental para a área do sul do Bronx”.



Os problemas do mundo não podem ser resolvidos nem por uma social-democracia – ou ao menos o tipo de social-democracia existente na Suécia e talvez na Áustria, que ainda está à altura do nome que tem – ou por uma “economia de mercado social” – o tipo de empreendimento moralizado e socialmente consciente que, se me permito uma previsão, a Igreja Católica favorecerá na próxima encíclica papal deste ano. Pois se nós nos esquecemos, o Santo Papa não se esqueceu que 1991 é o centenário da primeira encíclica social da Igreja, a Rerum Novarum. Estas coisas são melhores que o reaganismo e o thatcherismo, e muito melhor no caso da social-democracia, e provavelmente, na prática, é a melhor aposta para quem acredita no azarão socialista no momento. Mas os problemas do globo que hoje pode tornar-se inabitável pelo mero crescimento exponencial em produção e poluição, sem mencionar a capacidade tecnológica de destruição demonstrada pela guerra do Golfo, e os problemas de um mundo dividido em uma vasta maioria de povos famintos e uma minoria de Estados extraordinariamente ricos, não podem ser resolvidos desta maneira. Mais cedo ou mais tarde exigirão ação sistemática e planejada nacional e internacionalmente e uma investida contra as fortalezas centrais da economia de mercado de consumo.


Exigirão não apenas uma sociedade melhor que a do passado, mas, como sempre sustentaram os socialistas, um tipo diferente de sociedade. Uma sociedade que não é apenas capaz de salvar a humanidade de um sistema produtivo que perdeu o controle, mas em que as pessoas possam viver vidas dignas de seres humanos: não apenas no conforto, mas juntas e com dignidade.



É por esse motivo que o socialismo ainda tem um programa 150 anos após o manifesto de Marx e Engels. É por esse motivo que está no programa.


“A única generalização cem por cento segura sobre a história é aquela que diz que enquanto houver raça humana haverá história.”


Nota:
[1] The Class Struggle (Erfurt Program), Chicago, 1910, p. 125.

Considerações: o texto traduzido foi cedido pelo nosso leitor e blogger Allefy Matheus. Novamente, devo a ele os agradecimentos.
Wesley Sousa

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem