Vitor Sartori sobre as contrarreformas: “conteúdo conservador e predatório”




Vitor Bartoletti Sartori é professor da faculdade de Direito da UFMG ligado ao departamento de Direito do trabalho e introdução ao Direito. Experiência na área de História, teoria da História, Filosofia, Filosofia política, Teoria e Filosofia do Direito, tendo como foco a relação entre os temas abordados em tais áreas para a conformação da historicidade moderna.




AC – Em sua opinião, os empresários serão beneficiados com essa reforma trabalhista?

Primeiramente, deve-se apontar que a “reforma” é, em verdade, uma contrarreforma, de claro conteúdo conservador e predatório: ela aprofunda o modelo de capitalista vigente no Brasil, e que se coloca de modo mais ou menos meandrado desde a colonização, em que produzíamos para o mercado internacional à custa da superexploração da força de trabalho e das riquezas naturais do país. Neste sentido, a “reforma trabalhista” traz medidas que buscam, depois de um curto período de pequenos ganhos salariais para a classe trabalhadora, a espoliação brutal dos trabalhadores que se coloca depois do ciclo de conciliação de classes (baseado também no aumento do preço das commodities) que foi efetivo até certo ponto durante o petismo de Lula e Dilma. Assim, quem se beneficia de modo pungente com as medidas temerárias do atual Ministro da Fazenda e de sua equipe econômica é o grande capital. Ou seja, a rigor, a figura do “empresário” (romantizada pela apologia meritocrática e capitalista) coloca-se no cenário nacional de tal modo que sua subordinação ao capital financeiro e transnacional é bastante clara, principalmente depois que a torneira dos subsídios estatais secou. Neste sentido específico, com o conjunto de medidas econômicas do (des)governo atual – dentre elas, o perdão da dívida de transnacionais, o leilão (a preço de banana) do petróleo – beneficia-se o “empresário” somente ao passo que se traz a perpetuação de sua subordinação ao capital transnacional e àquilo que há de mais conservador em termos de projeto nacional. Tudo isso, claro, às custas dos trabalhadores.


AC - Entre os itens já aprovados pela Câmara dos Deputados, está o que acaba com a assistência obrigatória do sindicato na homologação das demissões. O senhor acredita que dessa forma os sindicatos perdem ainda mais a força de atuação e os patrões conseguirão fazer acertos que não estão totalmente dentro da lei?

O grande projeto da burguesia “nacional” que se consolida depois da “redemocratização” (a transição lenta gradual e segura que nos levou à “nova” república) sempre foi a de acabar com o poder dos sindicatos, em especial, do sindicalismo combativo que surgiu com as greves de 1978-79 no ABC paulista e que teve influência no Brasil como um todo. Só foi possível que se diminuísse a combatividade dos sindicatos com o governismo dos anos do governo Lula e Dilma, que primou pela “governabilidade” e, portanto, pela atuação dentro da ordem do capitalismo subordinado brasileiro. No entanto, o golpe mortal nos sindicatos não havia sido dado, de modo que o trabalho sujo das camadas mais reacionárias da sociedade somente poderia vir com as atuais contrarreformas. A suposta “modernização” das relações de trabalho traz consigo a primazia do negociado sobre o legislado; e, em uma negociação, nunca se tem lados com o mesmo poder e condições, de modo que o mais forte economicamente, mas também em outros sentidos, sempre tem uma grande vantagem. A assistência obrigatória do sindicato vinha no sentido de minimizar isso e, no caso de um sindicalismo combativo, no limite, poderia trazer um horizonte de consciência classista ao trabalhador individual. Por mais que este último item que menciono estivesse longe de ser efetivo no cenário brasileiro, é um grande retrocesso o que está para acontecer. Aliás, não há nada no atual (des)governo que não seja um imenso retrocesso. É para isso que as camadas mais conservadoras da sociedade (e o capital transnacional, que ganhará rios de dinheiro com privatizações e com os negócios que envolvem o pré-sal, por exemplo) o colocaram aí.


AC - Segundo a proposta que tramita, patrões e empregados poderão negociar, por exemplo, jornada de trabalho e criação de banco de horas. O senhor acha que essa negociação será saudável para o empregado?

Em uma situação de igualdade negocial, ou seja, em que indivíduos atomizados negociam em um patamar supostamente horizontal, a primazia do poder econômico, representado pela estratificação da sociedade em classes sociais – que já é bastante brutal em um país como o Brasil – será esmagadora. O empregado, como trabalhador, sempre, é prejudicado nestas situações. O Direito do trabalho, no Brasil, mas o mesmo vale para o mundo, veio sendo uma espécie (falha, limitada, certamente, mas ainda assim importante) de freio ao ímpeto espoliativo do capital. Isto, mesmo do limitado ponto de vista daqueles que defendem o modo de produção capitalista, é extremamente necessário, já que, ao fim, propicia a reprodução da força de trabalho. Sem ela, este sistema econômico não funciona e nem pode funcionar. Com a “negociação” como palavra de ordem, as crises das formações sociais capitalistas atingirão os trabalhadores de modo ainda mais gritante e a sobrevivência de uma burguesia débil cobrará seu preço na carne dos trabalhadores. A imposição direta e desavergonhada dos interesses do grande capital será uma realidade dolorosa. Trata-se de um retrocesso enorme. Quanto a questões ligadas literalmente à saúde, a tendência é que um colapso esteja por vir; atualmente, o estresse, a depressão e a ansiedade já são muito comuns e a questão certamente piorará com a “modernização” das relações de trabalho. Claro, com a possibilidade de mais horas de trabalho por dia, doenças ligadas mais diretamente ao trabalho também tendem a ter um avanço considerável.

AC - A ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Delaíde Arantes, criticou duramente a proposta que modifica a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ela disse recentemente que a reforma trabalhista permite o trabalho escravo. O senhor concorda com essa afirmativa? Por quê?

Situações análogas à escravidão são muito comuns no Brasil contemporâneo e a “modernização” das relações de trabalho, em especial, tendo em conta questões ligadas à terceirização, traz, de certo modo, um aval para estas formas de trabalho. Ao passo que um avanço real, mesmo que limitado pois ainda inserido nos limites do modo de produção capitalista, somente poderia se dar com o fim da terceirização (são gritantes as estatísticas de horas trabalhadas e de acidentes de trabalho em terceirizados), a tendência é a universalização desta forma de trabalho, a qual traz o reconhecimento oficial da precariedade do trabalho. Com a precariedade, no atual grau de desenvolvimento do capitalismo, formas de organização do trabalho que são antediluvianas são comuns, de modo que uma “modernização” vem a se dar na e pela miséria. Este ataque frontal está colocado na ordem do dia pelos grupos mais conservadores e o significado da “reforma” é trazido pelo ataque – somente possível depois do enfraquecimento decidido do sindicalismo combativo – brutal aos trabalhadores.

AC – Diante da afirmativa: “A reforma previdenciária é necessária, mas precisa ser mais justa”. Se o senhor fosse o legislador, o que faria de diferente? Qual seria a sua proposta?

Bem, a questão gira em torno de que reforma se trata. Como mencionei, o atual des(governo) promove contrarreformas. Do ponto de vista da sociedade atual, uma taxação massiva e progressiva de grandes fortunas, de fluxos financeiros, do lucro e das heranças deveria ser pensada antes de qualquer outra coisa; claro, elas não se relacionam diretamente à (contrar)reforma, mas, antes de tratar do assunto, é preciso mencionar o tema, que passa também pelo modo pelo qual tem havido desoneração de empresas transnacionais e nacionais e pelo qual há uma dívida tributária imensa por partes destas, e que é institucionalizada no Brasil. Em verdade, trazendo a questão, “na ponta do lápis”, as empresas preferem ter estas dívidas e, não é preciso insistir, os advogados são essenciais para a manutenção deste processo. O sistema contributivo do regime de previdência deveria ser repensado também, já que o ônus dos trabalhadores acaba sendo muito grande já na atualidade. De qualquer modo, somente é possível pensar em uma reforma da previdência procurando encontrar o modo pelo qual fosse possível um sistema tributário reestruturado de modo vigorosamente mais progressivo, ou seja, ao se ter em conta a capacidade contributiva real dos contribuintes e, com isso, a superação das desigualdades colocadas no capitalismo brasileiro. Uma questão importante a se discutir, porém, é: esta tarefa é possível dentro dos atuais limites do capitalismo mundial? Se ela não for, em minha opinião, qualquer posição minimamente progressista deveria se colocar como explícita e diretamente anticapitalista.

AC - E sobre a reforma previdenciária, quais são os pontos críticos?

O atual projeto é vergonhoso e simplesmente inviabiliza a aposentadoria da maioria da população. Em grande parte, pode haver interesses de gestores de “previdência complementar” falando muito alto neste caso. Ou seja, novamente, trata-se claramente de uma espoliação gritante dirigida contra os trabalhadores. Fundos de previdência complementar, via de regra, investem no mercado financeiro os valores que têm em caixa e, claro, isso envolve um risco grande, além de favorecer a hipertrofia do setor financeiro. Há casos, como o caso dos fundos dos Correios, em que as ações nas quais foram investidos os recursos dos fundistas simplesmente tiveram uma desvalorização gigantesca, com perdas substanciais. Neste sentido, a “reforma” é predatória e não pode ser apoiada sob pretexto algum. Como mencionei qualquer “reforma” precisaria ser pensada tendo em conta a reestruturação da gestão pública como um todo, ao passo que, em verdade, isso somente é possível criticando os pilares do capitalismo brasileiro e, no limite, o próprio modo capitalista de produção. Nos últimos anos, ele não traz praticamente mais nenhum progresso aos homens e às mulheres do Brasil e do mundo.

Agradecemos novamente o professor Dr. Vitor Sartori por sua gentileza para com a Acervo Crítico!

Wesley Sousa

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